PLATÃO
A Vida e as Obras
Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu
em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de antiga e
nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação
característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu
talento poético, que o acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na
expressão estética de seus escritos; entretanto isto prejudicou sem dúvida a
precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes de suas
obras não têm verdadeira importância e valor filosófico.
Aos vinte anos, Platão travou relação com
Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou por oito anos do
ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda
depois, Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do
mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em
Mégara.
Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto
giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a
veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve
ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o
desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo,
tirano de Siracusa e travou amizade profunda com Dion, cunhado daquele. Caído,
porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como escravo.
Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas.
Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua
célebre escola, que, dos jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso
de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma
herdade, onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva
da escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do
imperador Justiniano (529 d.C.).
Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela
filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o
Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder
experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas
duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a
precedente: a primeira viagem terminou com desterro de Dion; na segunda, Platão
foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e pelos seus amigos,
estando, então, Arquistas no governo do poderoso estado de Tarento.
Voltando para Atenas, Platão dedicou-se
inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à redação de suas
obras, atividade que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio
operar aquela libertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia -
como lemos no Fédon -
não é senão uma assídua preparação e realização no tempo. Morreu o grande
Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.
Platão é o primeiro filósofo antigo de quem
possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, que correm sob o seu
nome, muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa.
A forma dos escritos platônicos é o diálogo,
transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o
método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e
a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do
sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia
científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.
A atividade literária de Platão abrange mais de
cinqüenta anos da sua vida: desde a morte de Sócrates , até a sua morte. A parte mais
importante da atividade literária de Platão é representada pelos diálogos - em três grupos principais, segundo
certa ordem cronológica, lógica e formal, que representa a evolução do
pensamento platônico, do socratismo ao aristotelismo .
O Pensamento: A Gnosiologia
Como já em Sócrates, assim em
Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência que resolve o
problema da vida. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente,
através da especulação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de
Sócrates, que limitava a pesquisa filosófica, conceptual, ao campo
antropológico e moral - Platão estende tal indagação ao campo metafísico e
cosmológico, isto é, a toda a realidade.
Este caráter íntimo, humano, religioso da
filosofia, em Platão é tornado especialmente vivo, angustioso, pela viva
sensibilidade do filósofo em face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de
todas as coisas; em face do mal, da desordem que se manifesta em especial no
homem, onde o corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a
paixão contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano
peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, transpor
este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à
contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um amor nostálgico, pelo eros
platônico.
Platão como Sócrates, parte do conhecimento
empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao
conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém, tem o caráter
científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as
conclusões sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser
superado por um outro conhecimento, o conhecimento conceptual, porquanto no
conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-se elementos que não se
podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível, particular,
mutável e relativo, não pode explicar o conhecimento intelectual, que tem por
sua característica a universalidade, a imutabilidade, o absoluto (do conceito);
e ainda menos pode o conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de
beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano,
e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e mal-posição e
distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.
Segundo Platão, o conhecimento humano integral
fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensível, particular,
mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável,
absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar.
A diferença essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o
conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento
sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar
indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que
o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de
modo algum ser substituído por um conhecimento diverso, errôneo. Poder-se-ia
também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim, sem saber porque o
estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamente
assim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das
coisas pelas causas.
Sócrates estava convencido, como também Platão,
de que o saber intelectual transcende, no seu valor, o saber sensível, mas
julgava, todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da
opinião; Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular,
mutável, relativa - se possa de algum modo tirar o conceito universal,
imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a
priori, inatos no espírito humano, donde têm de ser oportunamente
tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhes
constituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme
a lei da associação.
Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de
Sócrates, dá ao conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real,
um objeto próprio: as idéias eternas e universais, que são os conceitos, ou
alguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento
empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um
objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as concebiam Heráclito e os sofistas. Deste
mundo material e contigente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza
inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro
- opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua
natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional
das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no dizer de
Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em que vivemos.
Teoria das Idéias
Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro
objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação
entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua
filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve
corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais,
necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do
outro, tudo no mundo é individual, contigente e transitório (Heráclito). Deve,
logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente
dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas
realidades chamam-se Idéias. As idéias não são, pois, no
sentido platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento,
são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas
visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a idéia de homem é o homem abstrato perfeito e
universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e
defeituosas.
Todas as idéias existem num mundo separado, o
mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. A certeza da sua existência
funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos
conhecimentos e na importância de explicar os atributos do ente de Parmênides,
sem, com ele, negar a existência do fieri. Tal a célebre teoria das idéias,
alma de toda filosofia platônica, centro em torno do qual gravita todo o seu
sistema.
A Metafísica
As Idéias
O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no
mundo divino das idéias; e estas contrapõe-se amatéria obscura
e incriada. Entre as idéias e a matéria estão o Demiurgo
e as almas, através de que desce das idéias à matéria aquilo de
racionalidade que nesta matéria aparece.
O divino platônico
é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que
está no vértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade
de estabelecer uma base ontológica, um objeto adequado ao conhecimento
conceptual. Esse conhecimento, aliás, se impõe ao lado e acima do conhecimento
sensível, para poder explicar verdadeiramente o conhecimento humano na sua
efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de
justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito
participa e a que aspira.
Visto serem as idéias conceitos personalizados,
transferidos da ordem lógica à ontológica, terão consequentemente as
características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serão
universais, imutáveis. Além disso, as idéias terão aquela mesma ordem lógica
dos conceitos, que se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são
ordenadas em sistema hierárquico, estando no vértice a idéia do Bem, que é
papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade
dos indivíduos é unificada nas idéias respectivas, assim a multiplicidade das
idéias é unificada na idéia do Bem. Logo, a idéia do Bem, no sistema platônico,
é a realidade suprema, donde dependem todas as demais idéias, e todos os
valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é o
ser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o
verdadeiro Deus platônico. No entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe
a personalidade e a atividade criadora. Desta personalidade e atividade
criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o
qual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujo modelo se serve
para ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.
As Almas
A alma, assim como o Demiurgo, desempenha
papel de mediador entre as idéias e a matéria, à qual comunica o movimento e a
vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a
alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto
Platão é um pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá
à alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista dos
seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e místicos. Assim é
que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às idéias, ao
Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo
material como que por uma espécie de queda original, de um mal radical. Deve
portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, como de um cárcere; esta
libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que
é separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte,
separando-se, então, na realidade, a alma do corpo.
A faculdade principal, essencial da alma é a de
conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza a
natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo
que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva
e vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais
funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da alma: a irascível(ímpeto),
que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiria no abdome -
assim como a alma racional residiria na cabeça. Naturalmente a
alma sensitiva e a vegetativa são subordinadas à alma racional.
Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual
com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma não encontra no corpo o seu
complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num
cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das idéias, que devem ser
trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das
tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o
mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha para
sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a
contemplação intuitiva do mundo ideal.
O Mundo
O mundo material,
o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e
a matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas,
introduzindo no caos a alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois,
está entre o ser (idéia)
e o não-ser (matéria),
e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber
e o não-saber, e é a opinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista
platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do mundo e, depois, partes da alma,
dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc.
O dualismo dos elementos constitutivos do mundo
material resulta do ser e do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal,
que aparecem no mundo. Da idéia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo
quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria -
indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao
contrário, tudo que há de negativo na experiência.
Consoante a astronomia platônica, o mundo, o
universo sensível, são esféricos. A terra está no centro, em forma de esfera e,
ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis
rodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.
No seu conjunto, o mundo físico percorre uma
grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no
da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de novo. É a
clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego,
que domina também a grande concepção platônica.
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