Mito e Filosofia
Marilena
Chauí
O que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma
coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do
fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos
instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.). A palavra
mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar,
narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar,
anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou
proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam
naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na
autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do
fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a
narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por
que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe
mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os
seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua
palavra - o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é,
pois, incontestável e inquestionável. Como o mito narra a origem do mundo e de
tudo o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres,
isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas
pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e
semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com
um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como
quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio,
certo-errado, etc. A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é,
narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres,
que são seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre
cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a
pessoa amada ou para seduzí-la e também serem amadas, o mito narra a origem do
amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de
Cupido). Houve uma grande festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos
a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria
veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa
relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre
faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias para se
satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua flecha,
esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa
astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora
rico e cheio de vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os
deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma
guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma
coisa no mundo dos homens. O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de
Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em
outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor
de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus,
ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os
troianos ou os gregos - vencer uma batalha. A causa da guerra, aliás, foi uma
rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano
Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As
outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general
grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os
deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece. Como o mito narra, por
exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois
com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os
alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem
fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra. Um titã,
Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo
e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num
rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os
homens também. Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher
encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas
maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e,
cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela
saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte.
Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas
por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que
governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo
são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias. A palavra gonia vem de
duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e
crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero,
espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da
concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e
organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a
organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós,
que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A
teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e
antepassados. Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao
nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a
origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas;
para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura
radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e
começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes
científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia
nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação
científica da realidade produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados do
século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a
importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os
mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma
sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo,
acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do
interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas
e afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos,
foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa
outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente. Quais são as
diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais
importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou
tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que
era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao
contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no
futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de genealogias e
rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas,
enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por
elementos e causas naturais e impessoais. O mito falava em Urano, Ponto e Gaia;
a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes
(os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos
de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por
composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e
frio, ou água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições, com o
fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da
narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da
autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite
contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação
seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não
vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres
humanos.

Segue o link para versão digital do texto trabalhado em sala enviado por Siloe:
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