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sábado, 21 de dezembro de 2013

CINCO LEIS DE RANGANATHAN






As cinco leis da Biblioteconomia

           Ranganathan é considerado o pai da Biblioteconomia, devido aos inúmeros trabalhos que publicou. As Cinco Leis da Biblioteconomia não é o primeiro trabalho desenvolvido pelo indiano, mas é sem dúvida um dos mais famosos:

  1. Livros são para serem lidos
  2. Para cada leitor o seu livro
  3. Para cada livro o seu leitor
  4. Poupe o tempo do leitor
  5. A biblioteca é um organismo crescente

Analisando essas Leis uma a uma, vemos que a simplicidade aparente delas se desdobra em algo complexo e completo, ou seja, vemos que elas abrangem todo o trabalho do bibliotecário enquanto responsável pela disseminação da informação. É uma visão um tanto futurista, considerando que foi um trabalho desenvolvido antes da explosão informacional ocorrida após a Segunda Guerra.


            Com esta lei, Ranganathan procura mostrar que os livros devem estar acessíveis ao público. Eles somente têm utilidade se forem lidos e para isso, precisam chegar até o leitor. Portanto, os bibliotecários devem criar mecanismos para tornar a biblioteca mais acessível e atraente para os usuários.


Nesta lei, fica evidente o trabalho do Serviço de Referência. O usuário deve ter acesso ao livro que lhe é necessário, sem que para isso tenha que ficar procurando por ele, ou que tenha que procurar a respeito de certos assuntos em livros que não lhe darão as informações de que precisa.


            A terceira lei segue a lógica das duas anteriores: os livros devem estar acessíveis para que os leitores certos o encontrem, ou seja, deve estar disponível de maneira simplificada, para que o usuário que o procura possa encontrá-lo. Usando um exemplo simples: um usuário que necessita de uma informação relacionada à física quântica não encontrará o que precisa em um livro de física mecânica, portanto, ele deve ser conduzido diretamente para os livros de física moderna.


            Essa é a lei mais clara de todas: o serviço da biblioteca deve ser eficiente e ágil. O usuário deve ser levado ao que necessita de maneira rápida e simples, sem que tenha que ficar procurando em materiais que não lhe fornecerão a informação de que precisa.


Para os que veem a biblioteca como um lugar parado no tempo, ultrapassado, essa lei parece ser inconcebível. Porém, a atualização constante dos acervos e das formas de lidar com o usuário é fator fundamental para manter a instituição. Novos estudos são publicados diariamente, da mesma forma que a biblioteca também recebe novos materiais constantemente. Seu acervo é renovado, ampliado ou até mesmo reduzido, de acordo com as necessidades e possibilidades da instituição.Por trás das estantes paradas existem inúmeros profissionais que mantém o acervo e trabalham para proporcionar o máximo de informações possíveis para o usuário.




segunda-feira, 24 de junho de 2013

PLATÃO



PLATÃO

 

A Vida e as Obras

Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais aristocráticos e abastados, de antiga e nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretanto isto prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes de suas obras não têm verdadeira importância e valor filosófico.
Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou por oito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides, em Mégara.
Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito, de que admirou a veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda com Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas.
Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, onde surgiu, tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade, onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.).
Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assim que o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion, esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas duas viagens políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou com desterro de Dion; na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e pelos seus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso estado de Tarento.
Voltando para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquela libertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no Fédon - não é senão uma assídua preparação e realização no tempo. Morreu o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.
Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, que correm sob o seu nome, muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa.
A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o mito e a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia científica que tanto caracterizam os escritos do sábio estagirita.
A atividade literária de Platão abrange mais de cinqüenta anos da sua vida: desde a morte de Sócrates , até a sua morte. A parte mais importante da atividade literária de Platão é representada pelos diálogos - em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica, lógica e formal, que representa a evolução do pensamento platônico, do socratismo ao aristotelismo .

O Pensamento: A Gnosiologia

Como já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência que resolve o problema da vida. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da especulação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a pesquisa filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade.
Este caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado especialmente vivo, angustioso, pela viva sensibilidade do filósofo em face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o corpo é inimigo do espírito, o sentido se opõe ao intelecto, a paixão contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, transpor este mundo e libertar-se do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por um amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém, tem o caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões sejam, mais ou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser superado por um outro conhecimento, o conhecimento conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-se elementos que não se podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, não pode explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a universalidade, a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos pode o conhecimento sensível explicar o dever ser, os valores de beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano, e se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e mal-posição e distinção que o sentido não pode operar por si mesmo.
Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável, absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença essencial entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o conhecimento intelectual, racional em geral, está nisto: o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além de ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de modo algum ser substituído por um conhecimento diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim, sem saber porque o estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamente assim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.
Sócrates estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual transcende, no seu valor, o saber sensível, mas julgava, todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião; Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa - se possa de algum modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a doutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano, donde têm de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhes constituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação.
Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao conhecimento racional, conceptual, científico, uma base real, um objeto próprio: as idéias eternas e universais, que são os conceitos, ou alguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento empírico, sensível, à opinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um objeto próprio: as coisas particulares e mutáveis, como as concebiam Heráclito e os sofistas. Deste mundo material e contigente, portanto, não há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível verdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior. Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior. Este mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em que vivemos.  

Teoria das Idéias

Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procura determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossos conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é individual, contigente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo de realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as representam. Estas realidades chamam-se Idéias. As idéias não são, pois, no sentido platônico, representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos e arquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a idéia de homem é o homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e defeituosas.
Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. A certeza da sua existência funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos conhecimentos e na importância de explicar os atributos do ente de Parmênides, sem, com ele, negar a existência do fieri. Tal a célebre teoria das idéias, alma de toda filosofia platônica, centro em torno do qual gravita todo o seu sistema.

A Metafísica

As Idéias

O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das idéias; e estas contrapõe-se amatéria obscura e incriada. Entre as idéias e a matéria estão o Demiurgo e as almas, através de que desce das idéias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.
O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que está no vértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se impõe ao lado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar verdadeiramente o conhecimento humano na sua efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira.
Visto serem as idéias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à ontológica, terão consequentemente as características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serão universais, imutáveis. Além disso, as idéias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que se obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em sistema hierárquico, estando no vértice a idéia do Bem, que é papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade dos indivíduos é unificada nas idéias respectivas, assim a multiplicidade das idéias é unificada na idéia do Bem. Logo, a idéia do Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas as demais idéias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é o ser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a atividade criadora. Desta personalidade e atividade criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o qual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujo modelo se serve para ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.

As Almas

A alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as idéias e a matéria, à qual comunica o movimento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo sobre a alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à alma humana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religiosos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às idéias, ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo material como que por uma espécie de queda original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, como de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que é separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na realidade, a alma do corpo.
A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza a natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir um princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas - ou partes da alma: a irascível(ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiria no abdome - assim como a alma racional residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são subordinadas à alma racional.
Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma não encontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como num cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das idéias, que devem ser trabalhosamente relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das tendências. E, apenas mediante uma disciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que desvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplação intuitiva do mundo ideal.

O Mundo

O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e a matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas, introduzindo no caos a alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (idéia) e o não-ser (matéria), e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a opinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do mundo e, depois, partes da alma, dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens, etc.
O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não-ser, da ordem e da desordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da idéia - ser, verdade, bondade, beleza - depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - indeterminada, informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao contrário, tudo que há de negativo na experiência.
Consoante a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A terra está no centro, em forma de esfera e, ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis rodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.
No seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentido do progresso, mas no da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo recomeça de novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego, que domina também a grande concepção platônica.


sábado, 22 de junho de 2013

FUNDAMENTOS DA BIBLIOTECONOMIA




A ORGANIZAÇÃO DA VIDA DE ESTUDOS NA UNIVERSIDADE
                                                                          
Antonio Joaquim Severino

Ao dar início a essa nova etapa de sua formação escolar, a etapa do ensino superior, o estudante dar-se-á conta de que se encontra diante de exigências específicas para a continuidade da sua vida de estudos. Novas posturas diante de novas tarefas ser-lhe-ão logo solicitadas. Daí a necessidade de assumir prontamente essa nova situação e de tomar medidas apropriadas para enfrentá-la.  É claro que o processo pedagógico-didático continua assim como a aprendizagem que dele ocorre. No conjunto, porém, as suas posturas de estudo devem mudar radicalmente, embora explorando tudo o que de correto aprendeu em seus estudos anteriores.
Em primeiro lugar, é preciso que o estudante se conscientize de que doravante o resultado do processo depende fundamentalmente dele mesmo, seja pelo seu próprio desenvolvimento psíquico e intelectual, seja pela própria natureza do processo educacional desse nível, as condições de aprendizagem transformam-se no sentido de exigir do estudante maior autonomia na efetivação da aprendizagem, maior independência em relação aos subsídios da estrutura de ensino e de recursos institucionais que ainda continuam sendo oferecidos. O aprofundamento da vida científica passa a exigir do estudante uma postura de auto-atividade didática que será sem dúvida, crítica e rigorosa. Todo o conjunto de recursos que está na base do ensino superior não pode ir além de sua função de fornecer instrumentos para uma atividade criadora.
Em segundo lugar, convencido da especificidade dessa situação, deve o estudante empenhar-se num projeto de trabalho altamente individualizado, apoiado no domínio e na manipulação de uma série de instrumentos que deve estar contínua e permanentemente ao alcance de suas mãos.  É com o auxílio desses instrumentos que o estudante se organiza na sua vida de estudo e disciplina sua vida científica. Dado ao novo estilo de trabalho a ser inaugurado pela vida universitária, a assimilação de conteúdos já não pode ser feita de maneira passiva e mecânica como costuma ocorrer, muitas vezes, nos ciclos anteriores. Já não basta a presença física às aulas e cumprimento forçado de tarefas mecânicas: é preciso dispor de um material de trabalho específico à sua área e explorá-lo adequadamente.

1. Os instrumentos de Trabalho


A formação universitária acarreta quase sempre atividades práticas, de laboratório ou de campo, culminando no fornecimento de algumas habilidades profissionais próprias de cada área.  Naturalmente, as várias áreas exigem, umas mais, outras menos, essa prática profissional. Contudo, antes de aí chegar, faz-se necessário um embasamento teórico pelo qual responde, fundamentalmente, o ensino superior. Essa fundamentação teórica das ciências, das artes e das técnicas é justificativa essencial desse nível de ensino. E é por aí que se inicia a tarefa de aprendizagem na universidade.
A assimilação desses elementos é feita através do ensino em classe propriamente dito, nas aulas, mas é garantida pelo estudo pessoal de cada estudante. E é por isso que precisa ele dispor dos devidos instrumentos de trabalho que, em nosso meio, são fundamentalmente bibliográficos
Ao dar início a sua vida universitária, o estudante precisa começar a  formar sua biblioteca pessoal, adquirindo paulatinamente, mas de maneira bem sistemática, os livros fundamentais para o desenvolvimento de seus estudos. Essa biblioteca deve ser especializada e qualificada. Essa bibliografia deve ser especializada e qualificada. As obras de referência geral, os textos clássicos esgotados, são encontrados nas bibliotecas das universidades, das várias faculdades ou de outras instituições. E, no momento oportuno, essas bibliotecas devem ser devidamente exploradas pelo estudante. O estudante precisa munir-se de textos básicos para o estudo da sua área específica, tais como um dicionário, um texto introdutório, um texto de história, algumas revistas especializadas, todas as obras específicas à sua área de estudo e áreas afins. Posteriormente, à medida que o curso for avançando, deve adquirir os textos monográficos e especializados referentes à matéria.
Esses textos básicos aqui assinalados têm por finalidade única criar um contexto, um quadro teórico geral a partir do qual se pode desenvolver a aprendizagem, assim com a maturação do próprio pensamento. Esses textos exercem, portanto, papel meramente propedêutico, situando-se numa etapa provisória de iniciação. Não se trata de maneira alguma de restringir o estudo aos manuais ou, pior ainda, às apostilas. Eles se fazem necessários, contudo, nesse momento de iniciação, sobretudo para complementar as exposições dos professores em classe, para servir de base de comparação com algum texto porventura utilizado pelos professores, enfim, para fornecer o primeiro instrumental de trabalho nas várias áreas, o vocabulário básico, os elementos de código das várias disciplinas. Esses textos desempenham, pois, o papel de fontes de consultas das primeiras categorias a partir das quais se desenvolverão os vários discursos científicos. Naturalmente, à medida do avanço e do aprofundamento do estudo, serão progressivamente substituídos pelos textos especializados, pelos estudos monográficos resultantes de pesquisas elaboradas pelos vários especialistas com os quais o estudante deverá conviver por muito tempo. Numa fase mais avançada de seus estudos, e sobretudo durante sua vida profissional, esses textos formarão a biblioteca do estudante, lançando as linhas mestras do seu pensamento científico organicamente estruturado. Nesse momento, os textos introdutórios só serão utilizados para cobrir eventuais lacunas do processo sequencial de aprendizagem.  Frise-se porém, que, na universidade, não se pode passar o tempo todo estudando apenas textos genéricos, comentários e introduções, embora,  pelo menos nas atuais  condições, iniciar o curso superior única e exclusivamente com textos especializados, sem nenhuma propedêutica teórica, seja um empreendimento de resultado pouco convincente.(...)
Deve ser igualmente estimulada entre os universitários, de maneira incisiva, a participação em acontecimentos extra-escolares, tais como simpósios, congressos, encontros semanais, etc.
Dentre os instrumentos de trabalho científico disponíveis atualmente, cabe dar especial destaque aos recursos eletrônicos gerados pela tecnologia informacional. De modo especial, cabe referir à rede mundial de computadores, a Internet, e aos muitos recursos comunicacionais da multimídia.


2. A exploração dos instrumentos de trabalho


Esse material didático científico deve ser considerado e tratado pelo estudante como base para seu estudo pessoal, que complementará os dados adquiridos através das atividades de classe. Uma vez documentada a matéria abordada em aula, devem ser igualmente documentados os elementos complementares a essa matéria e que são levantados mediante a pesquisa feita sobre este material de base. É que muitos esclarecimentos  só se encontram através  desses estudos  pessoais extraclasse.
A documentação como prática do trabalho científico é a maneira mais adequada e sistemática de “tomar apontamentos”. As informações colhidas nas aulas expositivas, nos debates em grupo, nos seminários e conferências são assinaladas, num primeiro momento de maneira precária e provisória, nos cadernos de anotações. Ao retomar em casa, as anotações, o estudante submetê-las-á a um processo de correção, de complementação e de triagem após o qual serão transcritas as fichas de documentação. Com efeito, ao tomar notas durante uma exposição, muitas ideias acabam ficando truncadas: é preciso reconstruí-las. O contexto ajudará tanto mais o que importa reter não é o texto da exposição do professor, mas as idéias principais.

3. A disciplina de Estudo


Apesar da aparente rigidez desta proposta de metodologia de estudo, ela é, sem dúvida, a mais eficiente. Pressupõe um mínimo de organização da vida de estudos, mas, em compensação, torna-se sempre mais produtiva. Em virtude de os universitários brasileiros, na sua grande maioria, disporem de pouco tempo para seus cursos e exercerem funções profissionais concomitantes ao curso superior, exige-se deles  organização sistemática do pouco tempo disponível para estudo em casa, indispensável para um aproveitamento mais inteligente do seu curso de graduação, com um mínimo de capacitação qualitativa para as etapas  posteriores tanto numa eventual sequência de estudos, como na continuidade de suas atividades profissionais definidas e oficializadas pelo seu curso.
Não se trata de estabelecer uma minuciosa divisão do horário de estudo: o essencial é aproveitar sistematicamente o tempo disponível, com uma ordenação de prioridades. Também não vem ao caso discutir as condições de ordem física e psíquica que sejam melhores para o estudo, muito dependentes das características pessoais de cada um, sendo difícil estabelecer normas gerais que acabam caindo numa tipologia artificial.
Feito o levantamento do tempo disponível, predetermina-se um horário para o estudo em casa. E uma vez estabelecido o horário, é necessário começar sem muitos rodeios e cumprí-lo rigorosamente, mantendo um ritmo de estudo. (...)
Tais diretrizes são aplicáveis igualmente ao estudo em grupo. Uma vez reunidos no horário combinado, os elementos do grupo devem desencadear o trabalho sem maiores rodeios, definindo-se as várias tarefas, as várias etapas a serem vencidas e as várias formas de procedimento.
Recomenda-se distribuir um tempo de estudo para os vários dias da semana, com o objetivo de revisar a matéria ou preparar aulas das várias disciplinas nos períodos imediatamente mais próximos às suas aulas. Caso haja necessidade de um período maior de concentração, a distribuição do tempo para as várias matérias levará em conta a carga de trabalho de cada uma o e grau de dificuldade das mesmas.


Conclusão


Para acompanhar o desenvolvimento do seu curso, o aluno deve preparar e rever aulas. O cronograma de estudo possibilita ao aluno maior proveito da aula, seja ela expositiva, um debate ou um seminário. Tratando-se da aula expositiva, até a tomada de apontamentos torna-se mais fácil, dada a familiaridade com a matéria que está sendo exposta; conseqüentemente, há melhores condições de selecionar o que é essencial e que deve ser anotado, evitando-se a sensação de “estar perdido” no meio de informações aparentemente dispersas.
A revisão da aula situa-se como a primeira etapa de personalização da matéria estudada. É o momento em que se retomam os apontamentos feitos apressadamente durante a aula e se dá acabamento aos informes, recorrendo-se aos instrumentos  complementares de pesquisa, após uma triagem dos elementos que passarão definitivamente para as fichas de documentação.  Não há necessidade, neste momento, de decorar os apontamentos: basta transcrevê-los, pensando detidamente sobre as ideias em causa e buscando uma compreensão exata dos conteúdos anotados. Rever essas fichas como preparação da aula seguinte é medida inteligente para o paulatino domínio de seu conteúdo.

Fonte:
Severino, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 22ª ed. São Paulo. Editora Cortez, 2002

sexta-feira, 21 de junho de 2013

APOLOGIA DE SÓCRATES



Em Apologia de Sócrates, o mesmo faz sua defesa sobre as acusações de "corromper a juventude, não acreditar nos deuses e criar a nova Deidade". (criar novos Deuses)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Apologia_de_S%C3%B3crates

Apologia de Sócrates

por Platão
Tradução de Maria Lacerda de Souza.
Primeira Parte - Sócrates apresenta sua defesa

I
O que vós, cidadão atenienses, haveis sentido, com o manejo dos meus
acusadores, não sei; certo é que eu, devido a eles, quase me esquecia de
mim mesmo, tão persuasivamente falavam. Contudo, não disseram, eu
o afirmo, nada de verdadeiro. Mas, entre as muitas mentiras que
divulgaram, uma, acima de todas, eu admiro: aquela pela qual disseram
que deveis ter cuidado para não serdes enganados por mim, como
homem hábil no falar.
Mas, então, não se envergonham disto, de que logo seriam desmentidos
por mim, com fatos, quando eu me apresentasse diante de vós, de
nenhum modo hábil orador? Essa me parece a sua maior imprudência,
se, todavia, não denominam "hábil no falar" aquele que diz a verdade.
Porque, se dizem exatamente isso, poderei confessar que sou orador,
não porém à sua maneira.
Assim, pois, como acabei de dizer, pouco ou absolutamente nada
disseram de verdade; mas, ao contrário, eu vo-la direi em toda a sua
plenitude. Contudo, por Zeus, não ouvireis, por certo, cidadãos
atenienses, discursos enfeitados de locuções e de palavras, ou
adornados como os deles, mas coisas ditas simplesmente com as
palavras que me vieram à boca; pois estou certo de que é justo o que
eu digo, e nenhum de vós espera outra coisa. Em verdade, nem
conviria que eu, nesta idade, me apresentasse diante de vós, ó cidadãos,
como um jovenzinho que estuda os seus discursos. E todavia, cidadãos
atenienses, isso vos peço, vos suplico: se sentirdes que me defendo
com os mesmos discursos com os quais costumo falar nas feiras, perto
dos bancos, onde muitos de vós tendes ouvido, e em outros lugares,
não vos espanteis por isso, nem provoqueis clamor. Porquanto, há o
seguinte: é a primeira vez que me apresento diante de um tribunal, na
idade de mais de setenta anos: por isso, sou quase estranho ao modo de
falar aqui. Se eu fosse realmente um forasteiro, seu dúvida,
perdoaríeis, se eu falasse na língua e maneira pelas quais tivesse sido educado; assim também agora vos peço uma coisa que me parece justa:
permiti-me, em primeiro lugar, o meu modo de falar - e poderá ser pior
ou mesmo melhor - depois, considerai o seguinte, e só prestai atenção
a isso: se o que digo é justo ou não: essa, de fato, é a virtude do juiz,
do orador - dizer a verdade.
II
É justo, pois, cidadãos atenienses, que em primeiro lugar, eu me
defenda das primeiras e falsas acusações que me foram apresentadas, e
dos primeiros acusadores; depois, me defenderei das últimas e dos
últimos. Porque muitos dos meus acusadores tem vindo até vós já há
bastante tempo, talvez anos, e sem jamais dizerem a verdade; e esses eu
temo mais do que Anito e seus companheiros, embora também sejam
temíveis os últimos. Mais temíveis porém são os primeiros, ó
cidadãos, os quais tomando a maior parte de vós, desde crianças, vos
persuadiam e me acusavam falsamente, dizendo-vos que há um tal
Sócrates, homem douto, especulador das coisas celestes e investigador
das subterrâneas e que torna mais forte a razão mais fraca. Esses,
cidadãos atenienses, que divulgaram tais coisas, são os acusadores que
eu temo; pois aqueles que os escutam julgam que os investigadores de
tais coisas não acreditam nem mesmo nos deuses. Pois esses
acusadores são muitos e me acusam já há bastante tempo; e, além disso,
vos falavam naquela idade em que mais facilmente podíeis dar crédito,
quando éreis crianças e alguns de vós muito jovens, acusando-me com
pertinaz tenacidade, sem que ninguém me defendesse. E o que é mais
absurdo é que não se pode saber nem dizer os seus nomes, exceto,
talvez, algum comediógrafo.
Por isso, quantos, por inveja ou calúnia, vos persuadiam, e os que,
convencidos, procuravam persuadir os outros, são todos, por assim
dizer, inabordáveis; porque não é possível fazê-los comparecer aqui,
nem refutar nenhum deles, mas devo eu mesmo me defender, quase
combatendo com sombras e destruir, sem que ninguém responda.
Admiti, também vós, como eu digo, que os meus acusadores são de
duas espécies, uns, que me acusaram recentemente, outros, há muito
dos quais estou falando e convinde que devo me defender
primeiramente destes, porque também vós os ouviste acusar-me em
primeiro lugar e durante muito mais tempo que os últimos. Ora bem, cidadãos atenienses, devo defender-me e empreender remover
de vossa mente, em tão breve hora, a má opinião acolhida por vós
durante muito tempo.
Certo eu desejaria conseguí-lo, e seria o melhor, para vós e para mim,
se, defendendo-me, obtivesse algum proveito; mas vejo a coisa difícil,
e bem percebo por quê. De resto, seja como deus quiser: agora é
preciso obedecer à lei e em defender.
III
Prossigamos, pois, e vejamos, de início, qual é a acusação, de onde
nasce a calúnia contra mim, baseado no qual Meleto me moveu este
processo.
Ora bem, que diziam os caluniadores ao caluniar-me? É necessário ler
a ata da acusação jurada por esses tais acusadores: - Sócrates comete
crime e perde a sua obra, investigando as coisas terrenas e as
celestes, e tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando isso
aos outros. - Tal é , mais ou menos, a acusação: e isso já vistes, vós
mesmos, na comédia de Aristófanes, onde aparece, aqui e ali, um
Sócrates que diz caminhar pelos ares e exibe muitas outras tolices, das
quais não entendo nem muito, nem pouco.
E não digo isso por desprezar tal ciência, se é que há sapiência nela,
mas o fato é, cidadãos atenienses, que, de maneira alguma, me ocupo de
semelhantes coisas. E apresento testemunhas: vós mesmos, e peço-vos
informai reciprocamente, mutuamente vos interrogueis, quantos de vós
me ouviram discursar algum dia; e muitos dentre vós são desses.
Perguntai-vos uns aos outros se qualquer de vós jamais me ouviu orar,
muito ou pouco, em torno de tais assuntos, e então reconhecereis que
tais são, do mesmo modo, as outras mentiras que dizem de mim.
IV
Na realidade, nada disso é verdadeiro, e , se tendes ouvido de alguém
que instruo e ganho dinheiro com isso, não é verdade. Embora, em
realidade, isso me pareça bela coisa: que alguém seja capaz de instruir
os homens, como Górgias Leontino, Pródico de Coo, e Hípias de
Élide. Porquanto, cada um desses, ó cidadãos, passando de cidade em
cidade, é capaz de persuadir os jovens, os quais poderiam conversar
gratuitamente com todos os cidadãos que quisessem; 
é capaz depersuadir a estar com eles, deixando as outras conversações,
compensado-os com dinheiro e proporcionando-lhes prazer.
Mas aqui há outro erudito de Paros, o qual eu soube que veio para
junto de nós, porque encontrei por acaso um que despendeu com os
sofistas mais dinheiro que todos os outros juntos, Cálias de Hipônico.
tem dois filhos e eu o interroguei: - Cálias, se os teus filhinhos fossem
potrinhos ou bezerros, deveríamos escolher e pagar para eles um
guardião, o qual os deveria aperfeiçoar nas suas qualidades inerentes:
seria uma pessoa que entendesse de cavalos e de agricultura. Mas,
como são homens, qual é o mestre que deves tomar para eles? Qual é o
que sabe ensinar tais virtudes, a humana e a civil? Creio bem que tens
pensador nisso uma vez que tem dois filhos. Haverá alguém ou não ? -
Certamente! - responde. E eu pergunto: - Quem é, de onde e por
quanto ensina? Eveno, respondeu, de Paros, por cinco minas. - E eu
acreditaria Eveno muito feliz, se verdadeiramente possui essa arte e a
ensina com tal garbo. Mas o que é certo é que também eu me sentiria
altivo e orgulhoso, se soubesse tais coisas; entretanto, o fato é,
cidadãos atenienses, que não sei.
V
Algum de vós, aqui, poderia talvez se opor a mim: - Mas Sócrates, que
é que fazes? De onde nasceram tais calúnias? Se não tivesses te
ocupado em coisa alguma diversa das coisas que fazem os outros, na
verdade não terias ganho tal fama e não teriam nascido acusações.
Dizes, pois, o que é isso, a fim de que não julguem a esmo.
Quem diz assim, parece-me que fala justamente, e eu procurarei
demonstrar-vos que jamais foi essa a causa produtora de tal fama e de
tal calúnia. Ouvi-me. Talvez possa parecer a algum de vós que eu
esteja gracejando; entretanto, sabei-o bem, eu vos direi toda a verdade.
Porque eu, cidadãos atenienses, se conquistei esse nome, foi por
alguma sabedoria. Que sabedoria é essa? Aquela que é, talvez
propriamente, a sabedoria humana. É, em realidade, arriscado ser sábio
nela: mas aqueles de quem falávamos ainda há pouco seriam sábios de
uma sabedoria mais que humana, ou não sei que dizer, porque certo
não a conheço. Não façais rumor, cidadãos atenienses, não fiqueis
contra mim, ainda que vos pareça que eu diga qualquer coisa absurda:
pois que não é meu o discurso que estou por dizer, mas refiro-me a outro que é digno de vossa confiança. Apresento-vos, de fato, o deus
de Delfos como testemunha de minha sabedoria, se eu a tivesse, e
qualquer que fosse. Conheceis bem Xenofonte. Era meu amigo desde
jovem, também amigo do vosso partido democrático, e participou de
vosso exílio e convosco repatriou-se. E sabeis também como era
Xenofonte, veemente em tudo aquilo que empreendesse. Uma vez, de
fato, indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo a respeito disso e - não
façais rumor, por isso que digo - perguntou-lhe, pois, se havia alguém
mais sábio que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém
mais sábio. E a testemunha disso é seu irmão, que aqui está.
VI
Considerai bem a razão por que digo isso: estou para demonstrar-vos de
onde nasceu a calúnia. Em verdade, ouvindo isso, pensei: que queria
dizer o deus e qual é o sentido de suas palavras obscuras? Sei bem que
não sou sábio, nem muito nem pouco: o que quer dizer, pois,
afirmando que sou o mais sábio? Certo não mente, não é possível. E
fiquei por muito tempo em dúvida sobre o que pudesse dizer; depois
de grande fadiga resolvi buscar a significação do seguinte modo: fui a
um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por
meio dele, sem dúvida, o oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha
resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu sou o
mais sábio. Examinando esse tal: - não importa o nome, mas era,
cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava
essa impressão. - e falando com ele, afigurou-se-me que esse homem
parecia sábio a muitos outros e principalmente a si mesmo, mas não
era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí
me veio o ódio dele e de muitos dos presentes. Então, pus-me a
considerar, de mim para mim, que eu sou mais sábio do que esse
homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e
bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la,
enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber.
Parece, pois, que eu seja mais sábio do que ele, nisso - ainda que seja
pouca coisa: não acredito saber aquilo que não sei. Depois desse, fui a
outro daqueles que possuem ainda mais sabedoria que esse, e me
pareceu que todos são a mesma coisa. Daí veio o ódio também deste e
de muitos outros. 
VI
Depois prossegui sem mais me deter, embora vendo, amargurado e
temeroso, que estava incorrendo em ódio; mas também me parecia
dever fazer mais caso da resposta do deus. Para procurar, pois o que
queria dizer o oráculo, eu devia ir a todos aqueles que diziam saber
qualquer coisa. E então, cidadãos atenienses, já que é preciso dizer a
verdade, me aconteceu o seguinte: procurando segundo o dedo do
deus, pareceu-me que os mais estimados eram quase privados do
melhor, e que, ao contrário, os outros, reputados ineptos, eram homens
mais capazes, quando à sabedoria.
Ora, é preciso que eu vos descreva os meus passos, como de quem se
cansava para que o oráculo se tornasse acessível a mim. Depois dos
políticos, fui aos poetas trágicos, e, dos ditirâmbicos fui aos outros,
convencido de que, entre esses, eu seria de fato apanhado como mais
ignorante do que eles. Tomando, pois, os seus poemas, dentre os que
me pareciam os mais bem feitos, eu lhes perguntava o que queriam
dizer, para aprender também alguma coisa com eles.
Agora, ó cidadãos, eu me envergonho de vos dizer a verdade; mas
também devo manifestá-la. Pois que estou para afirmar que todos os
presentes teriam discorrido sobre tais versos quase melhor do que
aqueles que os haviam feito.
Em poucas palavras direi ainda, em relação aos trágicos, que não
faziam por sabedoria aquilo que faziam, mas por certa natural
inclinação, e intuição, assim como os adivinhos e os vates; e em
verdade, embora digam muitas e belas coisas, não sabem nada daquilo
que dizem. O mesmo me parece acontecer com os outros poetas; e
também me recordo de que eles, por causa das suas poesias,
acreditavam-se homens sapientíssimos ainda em outras coisas, nas
quais não eram. Por essa razão, pois, andei pensando que, nisso eu os
superava, pela mesma razão que superava os políticos.
VIII
Por fim, também fui aos artífices, porque estava persuadido de que por
assim dizer nada sabiam, e, ao contrário, tenho que dizer que os achei
instruídos em muitas e belas coisas. Em verdade, nisso me enganei:
eles, de fato. sabiam aquilo que eu não sabia e eram muito mais sábios
do que eu. Mas, cidadãos atenienses, parece-me que também os artífices tinham o mesmo defeito dos poetas: pelo fato de exercitar
bem a própria arte, cada um pretendia ser sapientíssimo também nas
outras coisas de maior importância, e esse erro obscurecia o seu saber.
Assim, eu ia interrogando a mim mesmo, a respeito do que disse o
oráculo, se devia mesmo permanecer como sou, nem sábio da sua
sabedoria, nem ignorante da sua ignorância, ou ter ambas as coisas,
como eles o tem.
Em verdade, respondo a mim e ao oráculo que me convém ficar como
sou.
IX
Ora, dessa investigação, cidadãos atenienses, me vieram muitas
inimizades e tão odiosas e graves que delas se derivaram outras tantas
calúnias e me foi atribuída a qualidade de sábio; pois que, a cada
instante, os presentes acreditam que eu seja sábio naquilo que refuto os
outros. Do contrário, ó cidadãos, o deus é que poderia ser sábio de
verdade, ao dizer, no oráculo, que a sabedoria humana é de pouco ou
nenhum preço; e parece que não tenha querido dizer isso de Sócrates,
mas que se tenha servido do meu nome, tomando-me por exemplo,
como se dissesse: aqueles dentre vós, ó homens, são sapientíssimos os
que, como Sócrates, tenham reconhecido que em realidade não tem
nenhum mérito quanto à sabedoria.
Por isso, ainda agora procuro e investigo segundo a vontade do deus,
se algum dos cidadãos e dos forasteiros me parece sábio; e quando não,
indo em auxílio do deus, demonstro-lhe que não é sábio. E, ocupado
em tal investigação, não tenho tido tempo de fazer nada de nada de
apreciável, nem nos negócios públicos, nem nos privados, mas
encontro-me em extrema pobreza, por causa do serviço do deus.
Além disso, os jovens ociosos, os filhos dos ricos, seguindo-me
espontaneamente, gostam de ouvir-me examinar os homens, e muitas
vezes me imitam, por sua própria conta, e empreendem examinar os
outros; e então, encontram grande quantidade daqueles que acreditam
saber alguma coisa, mas, pouco ou nada sabem. Daí, aqueles que são
examinados por eles encolerizam-se comigo assim como com eles, e
dizem que há um tal Sócrates, perfidíssimo, que corrompe os jovens. E
quando alguém os pergunta o que é que ele faz e ensina, não tem nada
o que dizer, pois ignoram. Para não parecerem embaraçados, dizem aquela acusação comum, a qual é movida a todos os filósofos: que
ensina as coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses, e a
tornar mais forte a razão mais débil. Sim, porque não querem, ao meu
ver, dizer a verdade, isto é, que descobriram a presunção de seu saber,
quando não sabem nada. Assim, penso, sendo eles ambiciosos e
resolutos e em grande número, e falando de mim concordemente e
persuasivamente, vos encheram os ouvidos caluniando-me de há muito
tempo e com persistência. Entre esses, arremessaram-se contra mim
Meleto, Anito e Licon: Meleto pelos poetas, Anito pelos artífices,
Licon pelo oradores. De modo que, como eu dizia no princípio, ficaria
maravilhado se conseguisse, em tão breve tempo, tirar do vosso ânimo
a força dessa calúnia, tornada tão grande.
Eis a verdade, cidadãos atenienses, e eu falo sem esconder nem
dissimular nada de grande ou de pequeno.
Saibam, quantos o queiram, que por isso sou odiado; por que digo a
verdade, e que tal é a calúnia contra mim e tais são as causas. E tanto
agora como mais tarde ou em qualquer tempo, podereis considerar
essas coisas: são como digo.
X
É suficiente, pois. esta minha defesa diante de vós, contra a acusação
movida a mim pelos primeiros acusadores. Agora procurarei defender-me de Meleto, homem de bem e amante da pátria, como dizem, e um
dos últimos acusadores.
Voltemos, portanto, ao ato de acusação, jurado por ele, como por
outros acusadores. É mais ou menos assim:
-Sócrates - diz a acusação - comete crime corrompendo os jovens e
não considerando como deuses os deuses que a cidade considera,
porém outras divindades novas.- Esta é a acusação. Examinemo-la
agora, em todos os seus vários pontos. Diz, primeiro, que cometo
crime, corrompendo jovens. Ao contrário, eu digo, cidadãos
atenienses, Meleto é quem comete crime, porque brinca com as coisas
graves. Conduzindo com facilidade os homens ao tribunal,
aparentando ter cuidado e interesse por coisas em que de fato nunca
pensou. Procurarei mostrar-vos que é bem assim.
XI
 -Agora, dize-me, Meleto: não é verdade que te importa bastante que os
jovens se tornem cada vez melhores, tanto quanto possível?
-Sim, é certo.
-Vamos, pois, dize-lhes quem os torna melhores; é claro que tu o deves
saber, sendo coisa que te preocupa, tendo de fato encontrado quem os
corrompe, como afirmas, uma vez que me trouxeste aqui e me acusa.
Continua, fala e indica-lhes quem os torna melhores. Vê, Meleto, calas
e não sabes o que dizer. E, ao contrário não te parece vergonhoso e
suficiente prova do que justamente eu digo, que nunca pensaste em
nada disso? Mas, dizes, homem, de bem, quem os torna melhores?
-As leis.
- Mas não pergunto isso, ótimo homem, mas qual o homem que sabe,
em primeiro lugar, isso exatamente, as leis.
- Aqueles, Sócrates, os juízes.
- Como, Meleto, esses são capazes de educar os jovens e os tornar
melhores?
-Como não?
-Todos, ou alguns apenas, outros não?
- Todos.
- Muito bem respondido, por Hera: Vê quanta abundância de pessoas
úteis! Como ? Também estes, que nos escutam, tornam melhores os
jovens ou não?
- Também estes.
-E os senadores?
-Também os senadores.
- É assim, Meleto. Não corrompem os jovens os cidadãos da
Assembléia, ou também todos esses os tornam melhores?
- Também esses.
-Assim, pois, todos os homens, como parece, tornam melhores os
jovens, exceto eu. Só eu corrompo os jovens. Não é isso?
- Isso exatamente afirmo de modo conciso.
- Oh! Que grande desgraça descobriste em mim! E responde-me: será
assim também para os cavalos? que aqueles que os tornam melhores
são todos homens e que só um os corrompe? Ou será o contrário, que
um só é capaz de os tornar melhores, e bem poucos aqueles que
entendem de cavalos; e os mais, quando querem manejá-los e usá-los, os estragam? Não é assim, Meleto, para os cavalos como para todos os
animais? Sim, certamente, ainda que tu e Anito o neguem ou afirmem.
Pois seria uma grande fortuna para os jovens que um só corrompesse e
os outros lhe fossem todos úteis. Mas, na realidade, Meleto, mostraste
o suficiente que jamais te preocupaste com os jovens, e claramente
revelaste o teu desmazelo, que nenhum pensamento te passou pela
mente, disto que me acusas.
XII
- E , agora, dize-me, por Zeus, Meleto: que é melhor, viver entre
virtuosos cidadãos ou entre malvados? Responde, meu caro, não te
pergunto uma coisa difícil. Não fazem os malvados alguma maldade
aos que são seus vizinhos, e alguns benefícios os bons?
- Certamente.
- E haverá quem prefira receber malefícios a ser auxiliado opor aqueles
que estão com ele? Responde, porque também a lei manda responder.
Há os que gostam de ser prejudicados.
-Não,por certo.
-Vamos, pois, tu me acusas como pessoa que corrompe os jovens e os
torna piores, voluntariamente ou involuntariamente?
- Para mim, voluntariamente.
- Como, Meleto? Tu, nesta idade, és mais sábio do que eu, tão velho,
sabendo que os maus fazem sempre mal aos mais próximos e os bons
fazem bem: eu, pois, cheguei a tal grau de ignorância que não sei nem
isso, que se tornasse maus alguns daqueles que estavam comigo,
correria o risco de receber dano, se é que faço um tão grande mau,
como dizes. Não te creio, Meleto, quanto a isso, e ninguém te acredita,
penso.
Mas, ou não os corrompo, ou, se os corrompo, é involuntariamente, e
em ambos os casos mentiste. E, se os corrompo involuntariamente,
não há leis que mandem trazer aqui alguém, por tais fatos
involuntários, mas há as que mandam conduzí-lo em particular,
instruindo-o, advertindo-o; é claro que se me convencer, cessarei de
fazer o que estava fazendo sem querer. Tu, ao contrário, evitaste
encontrar-me e instruir-me, não o quiseste; e me conduzes aqui, onde a
lei ordena citar aqueles que tem necessidade de pena e não de instrução.
 XIII
Mas, cidadãos atenienses, os fatos evidenciaram o que eu sempre disse.
Jamais Meleto prestou atenção a tais coisas, nem muita, nem pouca.
Todavia, explica, Meleto, o que significa a tua expressão, dizendo
corrompo os jovens. É claro, segundo a acusação escrita por ti mesmo,
que ensino a não respeitar os deuses que a cidade respeita, porém,
outras divindades novas. Não dizes que os corrompo, ensinando tais
coisas?
-Sim, é isso mesmo que eu digo, sempre que posso.
- Assim, pois, Meleto, por estes mesmos deuses, de que agora está
falando, fala ainda mais claro, a mim e aos outros. Não consigo
entender se dizes que eu ensino a creditar que existem certos deuses - e
em verdade creio que existem deuses, e não sou de todo ateu, nem sou
culpado de tal erro - mas não são os da cidade, porém outros, e disso
exatamente me acusas, dizendo que eu creio em outros deuses. Ou
dizes que eu mesmo não creio inteiramente nos deuses e que ensino
isso aos outros?
- Eu digo isso, que não acreditas inteiramente nos deuses.
- Admirável Meleto, a quem disse eu isso? Não creio, pois, do mesmo
modo que os outros homens, que o sol e a lua são deuses?
-Não, por Zeus, ó juízes: ele disse de fato que o sol é uma pedra, e a
lua, terra.
- Tu acreditas acusar Anáxagoras, caro Meleto; e me desprezas tanto e
me consideras tão privado de letras a ponto de não saber que os livros
de Anáxagoras Clazomênio estão cheios de tais raciocínios? De modo
que os jovens aprendem coisas de mim, pelas quais podem talvez,
pagando todos no máximo uma dracma, rir-se de Sócrates, quando se
lhe atribui arrogância, embora isso pareça estranho. Mas, por Zeus,
assim te parece, que eu creio que não exista nenhum deus?
-Nenhum, por Zeus, nenhum mesmo.
- És de certo, indigno de fé, Meleto, e também a ti mesmo, me parece,
tais coisas são inacreditáveis. Porque este homem, cidadãos atenienses,
me parece a própria arrogância e imprudência, e certamente escreveu
essa acusação por medo, intemperança e leviandade juvenil. De fato
ele, para mim, se assemelha a alguém que proponha um enigma e diga,
interrogando-se a si mesmo: perceberá Sócrates, o sábio, que eu estou zombando dele e me contradigo, ou conseguirei enganá-lo e aos outros
que me ouvem? E, ao contrário, me parece que, no ato da acusação, se
contradiz de propósito, como se dissesse: Sócrates comete crime, não
acreditando nos deuses, mas acreditando nos deuses. E isso, na verdade
é fazer zombaria.
XIV
- Considerai, pois, comigo, ó cidadãos, de que modo me parece que ele
diz isso. Responde-nos tu, Meleto, e vós, como pedi a princípio, não
façais rumor contra mim, se conduzo o raciocínio desse modo.
Existem entre os homens, Meleto, os que acreditam que há coisas
humanas, que não há homens? Que responda ele, ó juízes, sem
resmungar ora uma coisa ora outra. Há os que acreditam que não há
cavalos, e coisas que tenham relação com os cavalos sim? Ou
acreditam que não há flautistas, e coisas relativas à flauta sim? Não
há? Ótimo homem, se não queres responder, digo-o eu, aqui, a ti e aos
outros presentes. Mas, ao menos, responde a isto: Há quem acredite
que há coisas demoníacas, e demônios não?
- Não há.
-Oh! como estou contente que tenhas respondido de má vontade,
constrangido por outros! Tu dizes, pois, que eu creio e ensino coisas
demoníacas, sejam novas, sejam velhas; portanto, segundo o teu
raciocínio, eu creio que há coisas demoníacas e o juraste na tua
acusação. Ora, se creio que há coisas demoníacas, certo é
absolutamente necessário que eu creia também na existência dos
demônios. Não é assim? Assim é: estou certo de que o admites, porque
não respondes. E não temo em apreço os demônios como deuses ou
filho de deuses? Sim, ou não?
- Sim, é certo.
- Se, pois, creio na existência dos demônios, como dizes, se os
demônios são uma espécie de deuses, isso seria propor que não
acredito nos deuses, e depois, que, ao contrário, creio nos deuses,
porque ao menos creio na existência dos demônios. Se, por outra parte,
os demônios são filhos bastardos dos deuses com as ninfas, ou outras
mulheres, das quais somente se dizem nascidos, quem jamais poderia
ter a certeza de que são filhos dos deuses se não existem deuses? Seria
de fato do mesmo modo absurdo que alguém acreditasse nas mulas, filhas de cavalos e das jumentas, e acreditassem não existirem cavalos e
asnos. Mas, Meleto, tua acusação foi feita para me pôr à prova, ou
também por não saber a verdadeira culpa que me pudesses atribuir: por
que, pois, te arriscas a persuadir um homem, mesmo de mente restrita,
de que pode a mesma pessoa acreditar na existência das coisas
demoníacas e divinas, e, de outro lado, essa pessoa não admitir
demônios, nem deuses, nem heróis? Isso não é possível.
XV
Em realidade, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu,
segundo a acusação de Meleto, não me parece ser necessária longa
defesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no princípio, que há
muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é verdade.
E isso é o que me vai perder, se eu me perder ... e não Meleto, ou
Anito, mas, a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se
perderam muitos outros homens virtuosos, e outros ainda, creio, serão
perdidos; não há perigo que a série se feche comigo. Mas talvez
pudesse alguém dizer: não te envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a
tais ocupações, pelas quais agora está arriscado a morrer? A isso, porei
justo raciocínio, e é o seguinte: não estás falando bem, meu caro, se
acreditas que um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja,
deve fazer caso dos riscos de viver ou morrer, e , ao contrário, só deve
considerar uma coisa: quando fizer o que quer que seja, deve
considerar se faz coisa justa ou injusta, se está agindo como homem
virtuoso ou desonesto. Porquanto, segundo a tua opinião, seriam
desprezíveis todos aqueles semi-deuses que morreram em Tróia. E,
com eles, o filho de Tétis, o qual, para não sobreviver à vergonha,
desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar Heitor, não deu
ouvido à predição de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe deve ter
dito mais ou menos isto: -Filho, se vingares a morte de teu amigo
Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente
depois de Heitor, o teu destino estará terminado. - Ouviu tais
palavras, não fez nenhum caso da morte e dos perigos, e, temendo muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: Morra eu
imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça
aqui como objeto de riso, junto das minhas naus recurvas inútil
fardo da terra. Crês que tenha feito caso dos perigos e da morte?
Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer que
alguém tenha colocado, reputando o melhor posto, ou se for ali
colocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de ir firme ao
encontro dos perigos, sem se importar com a morte ou com coisa
alguma, a não ser com as torpezas.
XVI
Gravíssimo erro deveria considerar, cidadãos atenienses, quando os
comandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me assinalaram um
posto em Potidéia, em Anfípolo, em Délio, não ter ficado eu onde me
colocaram como qualquer outro e correndo perigo de morte. Quando,
pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu
devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros,
então eu, se temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesse
abandonado o meu posto, isso seria deveras intolerável. Nesse caso,
com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de
não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e
temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser.
Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter
sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe.
Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos
os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se
soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão
ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não
se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior
parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do
Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é
melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem, isso é que é mal
e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por
acaso, são boas ou más. Anito disse que, ou não se devia, desde o
princípio, trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram não é
possível deixarem de me condenar à morte, afirmando que, se eu me
salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os ensinamentos de Sócrates, estariam de fato corrompidos. Mas, se me absolvêsseis, não
cedendo a Anito, se me dissésseis: Sócrates, agora não damos crédito a
Anito, mas te absolveremos, contando que não te ocupes mais dessas
tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fazer
isso, morrerás; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria:
- Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos
deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na
posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar
ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença,
dizendo-lhe, como é meu costume: - Ótimo homem, tu que és cidadão
de Atenas, da cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não
te envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais
puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te
importares de sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez
melhor?
E, se algum de vós protestar e prometer cuidar , não o deixarei já, nem
irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em
qualquer momento que pareça que não possui virtude, convencido de
que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das coisas de
grandíssima importância e grande caso das parvoíces. E isso o farei
com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho,
forasteiro ou cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me
sejam vizinhos por nascimento.
Isso justamente é o que me manda o deus, e vós o sabeis, e creio que
nenhum bem maior tendes na cidade, maior que este meu serviço do
deus.
Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se
preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e
com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela
seja quanto possível melhor, e vou dizendo que a virtude não nasce da
riqueza, mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros
bens, tanto públicos como privados.
Se, falando assim, eu corrompo os jovens, tais raciocínios são
prejudiciais; mas se alguém disser que digo outras coisas que não
essas, não diz a verdade. Por isso vos direi, cidadãos atenienses, que secundado Anito ou não, absolvendo-me ou não, não farei outra coisa,
nem que tenha de morrer muitas vezes.
VII
Não façais rumor, cidadãos atenienses, mas perseverai no que vos
estou dizendo, isto é, não vocifereis pelas coisas que vos digo, mas
ouvi-me; pois escutando-me, penso que tirareis proveito.
Aqui estou para vos dizer algumas outras coisas, e talvez, por isso,
levantareis a voz, mas não o deveis fazer. Sabei-o bem: se me
condenais a morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis
maior dano a mim que vós mesmos. E, de fato, nem Meleto, nem Anito
me poderiam fazer mal em coisa em alguma: isso jamais seria possível,
pois que não pode acontecer que um homem melhor receba dano de
um pior. É possível que me mandem matar, ou me exilem, ou me
tolham os direitos civis; mas provavelmente, eles ou quaisquer outros
reputam tais coisas como grandes males, ao passo que eu não
considero assim, e, ao contrário considero muito maior mal fazer o
que agora eles estão fazendo, procurando matar injustamente um
homem.
Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe de me defender por
amor a mim mesmo, como alguém poderia supor, mas por amor a vós,
para que, condenando-me, não tenhais de cometer o erro de repelir o
dom de mim que vos fez o deus. Pois que, se me mandares matar, não
encontrareis facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo dizê-lo)
tenha sido adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo com a um
cavalo grande e de pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é
aplicada a necessária esporada para sacudí-lo. Assim justamente me
parece que o deus me aplicou à cidade, de maneira que, despertando
cada um de vós e persuadindo-vos e desaprovando-vos, não deixo de
vos esporar os flancos, por toda a parte, durante todo o dia.
E outro parecido, não tereis tão facilmente, cidadãos. Mas, se me
ouvísseis me pouparíeis. É possível que vós irritados como aqueles
que são despertados quando no melhor do dono, repelindo-me para
condescender com Anito, levianamente me condeneis à morte, para
dormirdes o resto da vida, se, entretanto, o deus, pensando em vós, não
vos mandar algum outro. Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser um dom feito pelo
deus à cidade podereis deduzir do seguinte: não é, na verdade, do
homem, eu ter descuidado das minhas coisas, resignando-me por tantos
anos a me descuidar dos negócios domésticos para acudir sempre aos
vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particular
como um pai ou irmão mais velho, persuadindo-vos a vos
preocupardes com a virtude? Se, em verdade, disto eu obtivesse
qualquer coisa e recebesse compensação de tais advertências, teria uma
razão. Mas agora vós mesmos vedes que os acusadores, tendo acusado
a mim, com tanta imprudência, de tantas outras coisas, não foram
capazes de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou
pedido alguma recompensa.
Pois bem; apresento um testemunho suficiente do que digo: a minha
pobreza.
XVIII
Mas, poderia talvez parecer estranho que eu, andando daqui para lá, me
cansasse dando em particular esses conselhos, e depois, em público,
não ousasse, subindo diante do vosso povo aconselhar a cidade. A
causa disso é a que em várias circunstâncias, eu vos disse muitas
vezes: a mim me acontece qualquer coisa de divino e demoníaco; isso
justamente Meleto escreveu também no ato da acusação, zombando de
mim. E tal fato começou comigo em criança. Ouço uma voz, e
toda vez que isso acontece ela me desvia do que estou a pique de fazer,
mas nunca me leva à ação. Ora, é isso que me impede de me ocupar
dos negócios do Estado. E até me parece que muito a propósito me
impede, porquanto, sabei-o bem, cidadãos atenienses, se eu, há muito
tempo, tivesse empreendido ocupar-me com os negócios do Estado há
muito tempo já estaria morto, e não teria sido útil em nada, nem a vós,
nem a mim mesmo.
E não vos encolerizeis comigo, porque digo a verdade; não há nenhum
homem que se salve, se quer opor-se, com franqueza, a vós ou a
qualquer outro povo, e impedir que muitos atos contrários à justiça e
às leis se pratique na cidade. E não há outro caminho: quem combate
verdadeiramente pelo que é justo, se quer ser salvo por algum tempo,
deve viver a vida privada, nunca meter-se nos negócios públicos. Disso vos poderei dar grandes provas, não palavras, mas o que prezei:
fatos. Ouvi, pois, de minha boca, o que me aconteceu, para que não
saibais que não há ninguém a quem eu tenha feito concessões com
desprezo da justiça e por medo da morte; e que, ao mesmo tempo, por
essa recusa de toda concessão deverei morrer. Dir-vos-ei talvez coisas
comuns e pedantescas, mas verdadeiras. De fato, cidadãos atenienses,
não tenho mais nenhum cargo público na cidade, mas fui senador, e e,
à nossa Antiquóida coube por sorte a Pritânia, quando quisestes que
aqueles dez estrategistas, que não haviam recolhidos os mortos e os
náufragos da batalha naval, fossem julgados coletivamente, contra a
lei, no que todos vós conviestes. Então somente eu, dos pritanos, me
opus a vós, não querendo agir em oposição à lei ,e votei contra. E,
embora os oradores estivessem prontos a me acusar e me prender, e
vós os encorajásseis vociferando, mesmo assim, achei que me
convinha mais correr perigo com a lei e com o que era justo, do que,
por medo do cárcere e da morte, estar convosco, vós que deliberáveis o
injusto.
Isso acontecia quando a cidade era ainda governada pela democracia.
Quando veio a oligarquia, os Trinta, novamente tendo-me chamado,
em quinto lugar, ao Tolo, orderam-me que fosse à Salamina buscar o
Leão Salamínio, para que fosse morto. Muitos fatos desse gênero
tinham sido ordenados a muitos outros, com o fim de cobrir de
infâmia quanto pudessem. Também naquele momento, não com
palavras mas com fatos, demonstrei de novo que a morte não me
importava, ou me importava menos que um figo, eu diria se não fosse
indelicado dizê-lo. Mas não fazer nada de injusto e de ímpio isso sim,
me importa acima de tudo. Pois aquele governo, embora tão violento,
não me intimidou, para que fizesse alguma injustiça; mas quando
saímos de tolo, os outros quatro foram à Salaminas e trouxeram Leão,
e eu, ao contrário, afastei-me deles e fui para casa. Naquela ocasião, eu
teria sido morto, se o governo não fosse derrubado pouco depois. E
disso tendes testemunhas em grande número
XIX
Ora, julgais que eu teria vivido tantos anos, se me tivesse aplicado aos
negócios públicos, e procedendo como homem de bem, tivesse
defendido as coisas justas, e, como deve ser, tivesse dado a isso maior importância? Muito longe disso, cidadãos atenienses; na verdade,
também nenhum outro se teria salvo! Eu, porém, durante toda a minha
vida, se fiz alguma coisa, em público ou em particular, vos apareço
sempre o mesmo, não tendo jamais concedido coisa alguma contra a
justiça nem aos outros nem a algum daqueles que meus caluniadores
chamam de meus discípulos.
Mas nunca fui mestre de ninguém: de, pois, alguém mostrou desejoso
da minha presença quando eu falava, e acudiam à minha procura jovens
e velhos, nunca me recusei a ninguém. Nunca, ao menos, falei de
dinheiro; mas igualmente me presto a me interrogar os ricos e os
pobres, quando alguém, respondendo, quer ouvir o que digo, e se
algum deles se torna melhor, ou não se torna não posso ser
responsável, pois que não prometi, nem dei, nesse sentido, nenhum
ensinamento. E, se alguém afirmar que aprendeu ou ouviu de mim, em
particular, qualquer coisa de diverso do que disse a todos os outros,
sabei bem que não diz a verdade.
XX
Entretanto, como pode acontecer que alguns se comprazam em passar
muito tempo comigo? Já ouvistes, cidadãos atenienses, eu já vos disse
toda a verdade: é porque tomam gosto em ouvir examinar aqueles que
acreditam ser sábio e não o são; não é de fato coisa desagradável. E,
como disse, foi o deus que me ordenou a fazê-lo, com oráculos, com
sonhos, e com outros meios, pelos quais algumas vezes a divina a
vontade ordena a um homem que faça o que quer que seja.
Tudo isso, cidadãos atenienses, é verdade e fácil de provar. Com efeito,
suponhamos que, entre os jovens, há alguns que estou corrompendo e
outros que já corrompi: seria aparentemente inevitável que alguns
destes, quando tiveram mais idade, compreendessem que eu lhes tinha
alguma vez aconselhado uma ação má - e hoje deveriam estar aqui para
me acusar e vingar-se de mim. Suponhamos ainda, que eles não teriam
querido vir pessoalmente: mesmo assim, alguns de seus parentes, pais,
irmãos ou pessoas de família, se algum dia receberam danos de minha
parte, agora deveriam recordar e tirar vingança.
Mas eis que vejo aqui presentes muitos desses: primeiro Críton, meu
coevo e do mesmo demos, pai de Critóbulo; depois Lisânias Sfécio,
pai de Epígenes, além destes outros cujos irmãos estiveram comigo na intimidade: Nicostrato, filho de Teozóides e irmão de Teodoto (e
Teodoto, que já é falecido, não poderia impedir Nicostrato de falar
contra mim). E há ainda, Paralo de Demócodo, irmão de Teageto, do
qual é irmão Platão, e Aiantádoro, de que é irmão Apolodoro. E
muitos outros eu poderia citar, alguns dos quais especialmente
deveriam ter sido apresentados por meleto como testemunhas, no seu
discurso. Mas, se agora se esquivam, aos presentes aqui eu lhes
permito dizerem se há qualquer coisa dessa natureza. Mas vós, ó
juízes, sois de parecer contrário, achareis que todos estão prontos a me
ajudar; mas incorruptíveis homens já de idade avançada, parentes
daqueles, que razão teriam para me ajudar senão aquela, reta e justa,
convencidos de que Meleto mente e que eu digo a verdade?
XXI
Assim seja, ó cidadãos: é mais ou menos isso que eu poderei dizer em
minha defesa ou qualquer coisa semelhante. Provavelmente, porém,
algum de vós poderá ficar encolerizado, recordando-se de si mesmo.
Se sustentou uma contenda embora em menor proporções do que essa
minha, pediu e suplicou aos juízes, com muitas lágrimas, trazendo
aqui os filhos, e muitos outros parentes e amigos, a fim de mover a
piedade ao seu favor. Eu não farei certamente nada disso, embora vá ao
encontro, como se pode acreditar, do extremo perigo. É possível que
qualquer um, considerando isso, pudesse irritar-se contra mim, e,
encolerizado por isso mesmo, desse o voto com ira. Se, de fato, algum
de vós está em está em tal estado de alma, a mim me parece que
poderei dizer-lhe o seguinte: Também eu, meu caro, tenho uma
família, e bem posso, como em Homero, dizer que não nasci: "de um
carvalho nem de um rochedo", pois eu também tenho parentes e
filhinhos, ó cidadãos atenienses: três, um já jovenzinho e duas
meninas; mas contudo, não farei vir aqui nenhum deles para vos rogar
a minha absolvição.
Porque razão não farei nada disso? Não é por soberbia, ó atenienses,
nem por desprezo que eu tenha por vós, mas que eu seja corajoso ao
menos defronte a morte, isto é outra coisa. Tratando-se de honra, não
me parece belo, nem para mim nem para vós, pata toda cidade, que eu
faça tal, na idade em que estou, e com este nome de sábio que me dão,
seja ele merecido ou não. O fato é que me foi criada a fama de ser este Sócrates em quem há alguma coisa pela qual se torna superior à maioria
dos homens. Ora, se aqueles que entre nós, tem a reputação de ser
superiores aos demais, pela sabedoria, pela coragem, ou por qualquer
outro mérito procedessem de tal modo, seria bem feito.
Freqüentemente já notei essa atitude, quando são elas julgadas, em
pessoas que, malgrado a reputação de homens de valor que tem, se
entregam a extraordinárias manifestações, inspiradas pela idéia de que
será coisa terrível ter de morrer: como se, no caso em que vós não o
mandásseis à morte, devessem eles ser imortais. São esses homens que,
a meu ver, cobrem a cidade de vergonha, e que poderiam suscitar entre
os estrangeiros a convicção de aqueles que os próprios atenienses
escolheram, de preferência, para serem os seus magistrados e para as
demais dignidades, não se diferenciem das mulheres!
É um procedimento, atenienses, que não deverá ser o vosso, quando
possuirdes reputação em qualquer gênero de valor que seja; e que não
deveis permitir seja o meu, caso eu tenha alguma reputação, pois o que
deveis fazer é justamente que se compreenda isto: que aquele que se
apresenta no tribunal representando estes dramas lamentáveis será mais
certamente condenado por vós do que o que permanece tranqüilo.
XXII
Mas mesmo não fazendo caso da reputação, ó cidadãos, não me parece
também justo suplicar aos juízes e evitar a condenação com rogos, mas
iluminá-los e persuadí-los. Que o juiz não ceda já por isso, não
dispense sentença a favor, mas a pronuncie retamente e jure
condescender com quem lhe agrada, mas proceder segundo as leis. Por
isso, nem nós devemos habituar-vos a proceder contra o vosso
juramento, nem vós deveis permitir que nos habituemos a fazê-lo.
Não espereis, cidadãos atenienses, que eu seja constrangido a fazer,
diante de vós, coisas tais que não considero nem belas, nem justas, nem
santas, especialmente agora, por Zeus, que sou acusado de impiedade
por Meleto.
É evidente que, se com todo vosso juramento, eu vos persuadisse e
com palavras vos forçasse, eu vos ensinaria a considerar que não
existem deuses, e assim, enquanto me defendo, em realidade me
acusaria, só pelo fato de não crer nos deuses. Mas a coisa está bem longe de ser assim; porquanto, cidadãos
atenienses, creio neles, como nenhum dos meus acusadores, e
encarrego a vós e ao deus de julgar a mim, do modo que puder ser o
melhor para mim e para vós.

Segunda Parte - Sócrates é condenado e sugere sua sentença

XXIII
A minha impassibilidade, cidadãos atenienses. diante da minha
condenação, entre muitas razões, deriva também desta: eu contava com
isto, e até, antes me espanto do número dos dois partidos. Por mim,
não acreditava que a diferença fosse assim de tão poucos, mas de
muitos, pois, se somente trinta fossem da outra parte, eu estaria salvo
(nota: dos 501 juízes, 280 a favor e 220 contra).
De Meleto, ao contrário, estou livre, me parece ainda, e isso é evidente
a todos: se Anito e Licon não viessem aqui acusar-me Meleto teria
sido multado em mil dracmas, não tendo obtido o quinto dos votos.
XXIV
Eles pedem, pois, para mim, a pena de morte. Pois bem, atenienses, que
contraproposta vos farei eu? A que mereço, não é assim? Qual, pois?
Que pena ou multa mereço eu, que em toda a vida não repousei um
momento, mas descuidando daquilo que todos tem em grande conta, a
aquisição de riquezas e a administração doméstica, e os comandos
militares, e as altas magistraturas, e as conspirações, e os partidos que
surgem na cidade, conservei-me na realidade de ânimo bastante brando
para que pudesse, fugindo de tais intrigas, me livrar delas, não indo
aonde a minha presença não fosse de nenhuma vantagem nem para vós
nem para mim mesmo? Voltava-me, ao contrário, para os lados aonde
eu poderia levar, a cada um em particular, os maiores benefícios,
procurando persuadir cada um de vós a não se preocupar
demasiadamente com suas próprias coisas, antes que de si mesmo, para
se tornar quanto mais honesto fosse possível; a não cuidar dos
negócios da cidade antes que da própria cidade, e preocupar-se, assim,
do mesmo modo, com outras coisas. De que sou digno eu, tendo sido
assim procedido? De um bem, cidadãos atenienses, se devo fazer uma
proposta conforme o mérito; e um bem tal que me possa convir. E, que
convém a um pobre benemérito que tem necessidade de estar em paz,
para vos exortar ao caminho reto? Não há coisa que melhor convenha, cidadãos atenienses, que nutrir um tal homem a expensas do estado, no
Pritaneu; merece-o bem mais que um de vós que tenha sido vencedor
nos Jogos olímpicos, na corrida de de cavalos, de bigas ou quadrigas!
Esse homem, porém, faça com que o sejais; ele, homem rico, não tem
necessidade de que se cuide de sua subsistência, mas eu tenho
necessidade. Portanto, se devo fazer uma proposta segundo a justiça,
eis o que indico para mim: ser, a expensas do Estado, nutrido no
Pritaneu.
XXV
Ao contrário, talvez vos pareça que eu, ainda falando disso, o faça com
arrogância, pouco mais ou menos como quando falava da consideração
e dos rogos; mas não é assim, cidadãos atenienses, antes é deste modo:
estou persuadido de que não ofendo ninguém por minha vontade, mas
não vos posso persuadir também disto, porque o tempo em que
estamos raciocinando juntos é brevíssimo; e eu creio que, se as vossas
leis, como as de outros povos, não decidissem um juízo capital em um
dia, mas em muitos, vos persuadiria: ora, não é fácil, em pouco tempo,
destruir grandes calúnias.
Estando, pois, convencido de não ter feito injustiça a ninguém, estou
bem longe de fazê-la, a mim mesmo e dizer em meu dano ,que mereço
um mal, e me assinalar um de tal sorte. Que devo temer? É possível
que eu não tenha de sofrer a pena que me assinala Meleto e que eu digo
ignorar se será um bem ou mal? E, ao contrário disso, deverei escolher
uma daquelas que sei bem ser um mal, e propor-me essa pena? O
cárcere? E por que devo viver no cárcere, escravo do magistrado que o
preside, escravo dos Onze. Ou uma multa, ficando amarrado, quanto
não acabe de paga-la? Seria, pois, o exílio que deveria propor como
pena para mim? É possível que vós me indiquei essa pena. Ah! eu teria
verdadeiramente um amor excessivo à vida se fosse irrefletido ao
ponto de não ser capaz de refletir nisso: vós que sois meus
concidadãos acabastes por não achar meios de suportar meus sermões;
estes se tornaram para vós um fardo bastante pesado e detestável para
que procurei hoje livrar-vos, serão os meus sermões mais fáceis de
suportar para os outros? Muito longe disso, atenienses!
Bela vida, em verdade, seria a minha, nesta idade, viver fora da pátria,
passando de uma cidade a outra, expulso em degredo. Sei bem que onde quer que eu vá, os jovens ouvirão os meus discursos
como aqui: se eu os repelir, eles mesmos me mandarão embora,
convencendo os velhos a fazê-lo; e se não os repelir, os seus pais e
parentes me mandarão embora igualmente, com qualquer pretexto.
XXVI
Ora, é possível que alguém pergunte: - Sócrates, não poderias tu viver
longe da pária, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil
fazer aceitar a alguns dentre vós: se digo que seria desobedecer ao deus
e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranqüilo, não me
acreditaríeis, supondo que tal afirmação é, de minha parte, uma fingida
candura. Se, ao contrário, digo que o maior bem para um homem é
justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros
argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim
mesmo e aos outros, e, que uma vida sem esse exame não é digna de
ser vivida, ainda menos me acreditaríeis, ouvindo-me dizer tais coisas.
Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas não é fácil torná-lo
persuasivo.
E, por outro lado, não estou habituado a acreditar-me digno de
nenhum mal. De fato, se tivesse dinheiro, me multaria em uma soma
que pudesse pagar, porque não teria prejuízo algum; mas o fato é que
não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa pagar.
Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois em
tanto. Mas Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo e
Apolodoro me obrigam a multar-me em trinta minas, e oferecem
fiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores dignos de
crédito.
Terceira Parte - Sócrates se despede do tribunal
XXVII
Por não terdes querido esperar um pouco mais de tempo, atenienses,
ireis obter, da parte dos que desejam lançar o opróbio sobre a nosso
cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de um
sábio, de Sócrates. Porque, quem vos quiser desaprovar me chamará,
sem dúvida, de sábio, embora eu não o seja. Pois bem, tivésseis
esperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes,
de fato, a minha idade. E digo isso não a vós todos, mas àqueles que
me condenaram à morte. Digo, além disto, mais o seguinte a esses mesmos: É possível que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha
sido condenado por pobreza de raciocínio, com os quais eu poderia
vos persuadir, se eu tivesse acreditado que era preciso dizer a fazer
tudo, para evitar a condenação. Mas não é assim. Cai por falta, não de
raciocínios, mas de audácia e imprudência, e não por querer dizer-vos
coisas tais que vos teria sido gratíssimas de ouvir, choramingando,
lamentando e fazendo e dizendo muitas outras coisas indignas, as
quais, certo, estais habituados a ouvir de outros.
Mas, nem mesmo agora, na hora do perigo, eu faria nada de
inconveniente, nem mesmo agora me arrependo de me ter defendido
como o fiz, antes prefiro mesmo morrer, tendo-me defendido desse
modo, a viver daquele outro.
Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguém
convém tentar todos os meios para fugir à morte. Até mesmo nas
batalhas, de fato, é bastante evidente que se poderia evitar de morrer,
jogando fora as armas e suplicando aos que perseguem: e muitos
outros meios há, nos perigos individuais, para evitar a morte se se ousa
dizer e fazer alguma coisa.
Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja isso: fugir da morte. Bem
mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E
agora eu, preguiçoso como sou e velho, fui apanhado pela mais lenta,
enquanto os meus acusadores, válidos e leves, foram apanhados pela
mais veloz: a maldade.
Assim, eu me vejo condenado à morte por vós, condenados de verdade,
criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha
pena, vós dentro da vossa.
E, talvez, essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio que
cada qual foi tratado adequadamente.
XVIII
Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que me
condenastes, porque já estou no ponto em que os homens
especialmente vaticinam, quando estão para morrer. Digo-vos, de fato,
ó cidadãos que me condenaram, que logo depois da minha morte virá
uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me
tendes sacrificado. Fizestes isto acreditando subtrair-vos aoaborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vos
asseguro que tudo sairá ao contrário.
Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive,
e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e
disso tereis maiores aborrecimentos.
Se acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos,
não pensais justo; esse modo de vos livrardes não é decerto eficaz nem
belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicarse a se tornar, quanto se puder, melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós
que me condenastes. Chego ao fim.
XIX
Quanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer de
conversar com eles a respeito deste caso que acaba de ocorrer enquanto
os magistrados estão ocupados, enquanto não chega o momento de ter
de ir ao lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo este pouco de
tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos horas
juntos, enquanto de pode. É que a vós, como meus amigos, quero
mostrar, que não desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó
juízes - uma vez que, chamando-vos juízes vos dou o nome que vos
convém - aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela minha voz
habitual do demônio (daimon, gênio) em todos os tempos passados me
era sempre freqüente e se oponha ainda mais nos pequeninos casos,
cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito
bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo
e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males;
pois bem, o sinal do deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de
casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso.
Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a
palavra alguma.
Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu
caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando
pensamos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que,
por muito menos, o habitual signo, o meu demônio, se me teria
oposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bm.
Passemos a considerar a questão em si mesma, de como há grande
esperança de que isso seja um bem. Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem
absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer
que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de
existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se,
de fato, não há sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria
um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na
qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite
às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e
noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente do que
naquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo, mas até um
grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os
outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero
um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume a uma
única noite.
Se, ao contrário, a morte é como uma passagem deste para outro lugar,
e, se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual
o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se
chegarmos ao Hades, libertando-nos destes que se vangloriam serem
juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diria
que fazem justiça acolá: Monos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e
tantos outros deuses e semideuses que foram justos na vida; seria
então essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso? Que preço não
serieis capazes de pagar, para conversar com Orfeu, Museu, Hesíodo e
Homero?
Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim
especialmente. a conversação acolá seria maravilhosa, quando eu
encontrasse Palamedes e Ajax Telamônio e qualquer um dos antigos
mortos por injusto julgamento. E não seria sem deleite, me parece,
confrontar o meu com os seus casos, e, o que é melhor, passar o tempo
examinando e confrontando os de lá com cá, os últimos dos quis tem a
pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios e
não são. A que preço, ó juízes, não se consentiria em examinar aquele
que guiou o grande exército a Tróia, Ulisses, Sísifo, ou infinitos
outros? Isso constituiriam inefável felicidade. Com certeza aqueles de lá mandam a morte por isso, porque além do
mais, são mais felizes do que os de cá, mesmo porque são imortais, se
é que o que se diz é verdade
XXX
Mas também vós, ó juízes, deveis ter boa esperança em relação à
morte, e considerar esta única verdade: que não é possível haver algum
mal para um homem de bem, nem durante sua vida, nem depois da
morte, que os deuses não se interessam do que a ele concerne; e que,
por isso mesmo, o que hoje aconteceu, no que a mim concerne, não é
devido ao acaso, mas é a prova de que para mim era melhor morrer
agora e ser libertado das coisas deste mundo. Eis também a razão por
que a divina voz não me dissuadiu, e por que, de minha parte, não
estou zangado com aqueles cujos votos me condenaram, nem contra
meus acusadores.
Não foi com esse pensamento, entretanto, que eles votaram contra
mim, que me acusaram, pois acreditavam causar-me um mal. Por isto é
justo que sejam censurados. Mas tudo o que lhes peço é o seguinte:
Quando os meus filhinhos ficarem adultos, puni-os, é cidadãos,
atormentai-os do mesmo modo que eu os vos atormentei, quando vos
parecer que eles cuidam mais das riquezas ou de outras coisas do que
da virtude. E ,se acreditarem ser qualquer coisa não sendo nada,
reprovai-os, como eu a vós: não vos preocupeis com aquilo que não
lhes é devido.
E, se fizerdes isso, terei de vós o que é justo, eu e os meus filhos.
Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas,
quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para deus.
Extraído de: http://www.consciencia.org/